Categoria: Trabalho

Minha livraria preferida em São Paulo

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Eu entendo toda a discussão em torno das Megastores e do que elas fizeram com as pequenas livrarias e tal. O problema é que, gostemos ou não, as Megastores oferecem ao leitor algo que ele AMA absurdamente: a oportunidade de sentar em um lugarzinho confortável, abrir um livro e LER, sem compromisso. Deve ser um bom negócio para as livrarias. Eu, particularmente, sempre compro alguma coisa que não havia planejado comprar, simplesmente por ter lido e gostado. E olha que eu detesto gastar e não é nada fácil me fazer comprar alguma coisa que eu já não estivesse planejando há meses.

As Megastores nos vendem o ambiente. E, nesse quesito, a Livraria Cultura do Bourbon Shopping, aqui em São Paulo, é campeã. Eu já sou propensa a gostar mais do ambiente da Cultura, porque a iluminação é confortável e a decoração é aconchegante (e vice-versa). A Saraiva, com suas cadeiras desajeitadas e iluminação ruim parece que está me mandando embora: “lê logo esse negócio aí e passa no caixa!” A FNAC está mais interessada em me vender algum eletrônico e também não gosta muito que eu fique folheando seus livros. A Livraria da Vila do Shopping Cidade Jardim era minha preferida antes da reforma. Lugar tranquilo e sofazinhos super agradáveis. Depois da reforma, encolheu, e não tive mais coragem de ir. As outras unidades ainda não conseguiram me ganhar, mas tentam ser simpáticas.

comidas2A Livraria Cultura conta com uma ajuda de peso para se tornar minha favorita: o “V Café”. Eu já fui tantas vezes lá com meu marido nesses quase 4 anos que tenho memória afetiva. E nada é mais forte do que memória afetiva. Pego vários livros potencialmente interessantes, empilho na mesa do V-Café enquanto o Davison vai buscar frapê, empada de palmito, pão de queijo, esfiha de ricota, suco de melancia, torta de limão e o que mais tiver de bom por lá. Eu não posso comer nada disso (exceto o suco de melancia), mas desligo minhas proibições em nome da memória afetiva.

Leio, pego meu caderno, faço anotações, busco ideias para o trabalho, faço pesquisas, descubro autores, analiso editoras, faço um saudável mix trabalho-lazer. Às vezes levo o computador ou aproveito para exercitar a escrita analógica. Davison também pega seus livros favoritos, com foco na seção infanto-juvenil, onde ele faz a mesma pesquisa na área de ilustração. Meu foco atualmente tem sido na seção de negócios, administração, motivacional, além, é claro, da seção de comunicação. Mas se tem uma coisa que eu gosto de fazer é passear por estantes que não têm absolutamente nada a ver comigo ou com o que eu esteja fazendo. Às vezes aparece algo interessante.

Durante o tempo que estou lá, tento não derrubar nada de comer nos livros. E como eu sei que se derramar frapê em um livro ruim, vou ter que comprar o livro, procuro ser ainda mais cuidadosa quando não me interesso. Sinceramente, acho que todo esse acolhimento é justamente para criar memória afetiva nos consumidores. Com aquela sensação de estar na sala da casa da sua tia, comendo chá com bolinhos enquanto ela deixa você ler os livros que quiser, pode ter certeza de que a probabilidade de comprar alguma coisa ali é sempre grande. Ainda que você não compre em uma visita, inevitavelmente comprará na outra. Vínculos são muito mais importantes do que uma decisão impulsiva de compra.

A Livraria Cultura é minha amiga. Eu sei que não é, mas eu sinto como se fosse. E esse é o foco de todo o esforço no relacionamento com o cliente. Tenho consciência de que ela só quer meu dinheiro…rs…mas as outras também querem, então fico com quem me oferece a melhor experiência enquanto lá estou. Infelizmente, não é um passeio tão frequente quanto gostaríamos, mas é tão frequente quanto podemos fazer.

O Bourbon é assunto para um próximo post. Shopping originalmente gaúcho, ele é uma espécie de portal para Porto Alegre. Lembre-se de que eu sou gaúcha por adoção e morei por seis anos a poucos passos do Bourbon da Assis Brasil, em Porto Alegre. Só por isso, as memórias afetivas que criamos lá são ainda mais afetivas.

 

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PS: Não tenho patrocínio da livraria (antes que alguém me pergunte). A razão desse post é que eu coloquei no Instagram as fotos da minha visita mais recente à Livraria Cultura (tipo essa selfie ao lado… torta e desfocada porque minha mão treeeeeeeeeme muito) e me dei conta de que nunca tinha falado dela por aqui. Achei que seria legal falar um pouco do que eu gosto de fazer, assim vocês também participam. 😀

 

 

 

 

 

 

 

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Cordilheira

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Ela fechou dezesseis anos em duas malas e deixou na porta de casa. Assim, sem bilhete de despedida. Sem avisar que a partir daquela noite ele não dormiria mais em casa. Não que dormisse, na verdade. Perdeu as contas das vezes em que ele não aparecera. Cansou de perguntar, questionar, cobrar, insistir. As desculpas que ele inventava não passavam mais pela garganta. E apodreceram desde que começaram a esfarrapar. De lá para cá, ele não inventava mais. Não dizia nada. Simplesmente entrava pela porta, como se fosse um estranho. Como se a voz dela o irritasse. Ela se irritava.

As malas, do lado de fora. Como se elas fossem as culpadas de tudo. Exiladas no corredor, gritando por socorro. Fechou a porta. Atravessou a sala de paredes brancas e geladas, vazias, como ela se sentia agora. Na cozinha, a pilha de louça suja denunciava o descaso. Era seu protesto silencioso ao se sentir ignorada. Mas agora, com as malas na porta e a alma lavada, ela lavaria a louça, também. Ninguém mais a ignoraria. Sabia do seu valor. Não precisava de homem algum para ser feliz. Não era mais tão jovem, mas tinha sua independência, poderia muito bem escolher o seu futuro. Sem ele.

A pilha de louça se espalhava pela pia e já não era justo chamá-la apenas de “pilha”. Era uma montanha. Uma cordilheira. Tantos copos, pratos, panelas, talheres e coisas indecifráveis, amontoados e mergulhados em lodo, fungos e gosmas que deviam ter se formado na pré-história. Aquela louça parecia ter servido a um batalhão de homens das cavernas, se eles usassem louça naquela época. Mas era só dos dois. Não se lembrava há quanto tempo estava lá, mas era só dos dois. Detergente na esponja. Espuma. A água e o copo. Como aquilo foi acontecer? Como tudo chegou naquele estado?

No início, era o verbo. Amava. Ponto final. Ele era o centro de seu universo, ela o admirava e queria agradá-lo. Ele a admirava, elogiava – às vezes com palavras, às vezes com os olhos. Começaram a namorar ainda muito jovens, mas queriam crescer juntos. Quando vinham as brigas, ela se calava. Tentava evitar atrito a qualquer custo, e escondia os problemas, acreditando que depois que se casassem tudo se resolveria. Se casaram. E a avalanche começou.

Não, ela não sabia como tinha chegado naquele estado. Mal conseguia ver a colher por baixo daquele limo. Uma gosma marrom que a deixava enojada. Aquelas coisas cresceram ali, do nada. Ninguém colocou uma semente de gosma no meio da louça. Não tinha nenhum pedaço de gordura de rinoceronte encravado em algum garfo. Era louça normal, de pessoas normais, que comem comida light. E a gosma crescia.

Nunca tiveram grandes problemas. Eram sempre as discussõezinhas que surgiam em um dia e eram sufocadas pelo silêncio. Elas ressurgiam dali a algumas semanas, como monstras em filmes de terror. Geralmente maiores do que da primeira vez. A sensação de que estava sendo injustiçada fazia com que tentasse punir o marido. Nos primeiros anos, com o silêncio. Nos últimos anos, com gritos e cobranças. Ele não poderia fazer isso com ela, não poderia dizer tal coisa, ela precisava disso, ela queria aquilo… E ele… bem, ela não sabia exatamente o que ele pensava. No início, ele tentava falar. Agora, se calara.

Sacrificou seus dedos e renunciou ao nojo e à sua dignidade, por uma dignidade maior e mais duradoura. Retirou o maldito limo com as mãos e passou a esponja com detergente naquela colher. Derramou cloro na cordilheira de louças podres. Um sopro de ardência fechou seus olhos. Gotas salgadas na pia.

Quando começou a puni-lo sem explicar o que acontecia dentro dela? Quando desistiu de tudo? Deixar aquelas coisas na pia faria com que se lavassem sozinhas? Será que outro relacionamento não repetiria o fracasso desse? Por que pensava que alguma coisa poderia ser diferente? Será que foi uma boa ideia jogar cloro nesse negócio?

Correu para abrir a janela. Pronto! Não bastava a gosma pré-histórica de filme de terror, ela tinha que criar uma atmosfera com fumaça tóxica. Assim que ele abrisse a porta, pensaria que ela havia se suicidado. Algo como “tome suas malas, vá embora, agora eu vou me matar e a louça suja fica com a casa”. Riu.

Voltou para a louça. Já tinha muita coisa no escorredor, mas a pilha parecia do mesmo tamanho. Cordilheira. Quando iria acabar? Esponja. Detergente. Espuma.

No começo, aprendeu a cozinhar. Não foi fácil, mas tinha alguma coisa de amor em temperar o feijão, cozinhar o arroz e fritar um bife, e quanto maior era sua vontade de demonstrar o que sentia, maior era sua busca por novos sabores, novas texturas. Vê-lo se deliciar com o que suas mãos haviam preparado era sublime. Essa era a palavra. Su-bli-me. Encostava a ponta da língua nos lábios e dava aquele sorriso que era só dele. Como gostava da expressão satisfeita e dos olhos tranquilos com que ele a olhava depois do jantar! Ela sabia que, mais tarde, ele iria querer retribuir aquela satisfação da maneira que ele conseguia fazer. Que só ele conseguia fazer.

Dava raiva. Dava raiva daquele lodo, vontade de jogar a xícara no lixo. Vontade de jogar tudo no lixo e comprar louças novas. Mas de que iria adiantar se deixasse a louça nova na pia, acumulando restos não resolvidos? Gostava daquelas coisas. Gostava daquela história. Sacrificava seus dedos, renunciava seu orgulho por uma dignidade mais duradoura. As malas na porta. Já não sabia se queria aquele vazio na sala.

E quando ele a envolvia nos braços, a fazia se sentir segura. E entregue. Como se não precisasse de mais nada. Sabia que podia contar com ele quando estava bem. E sabia como fazê-lo ficar bem. Como fazia no começo. Quando começaram a reagir negativamente às reações negativas do outro? Quando aquela coisa nojenta começou a se espalhar? Aquele lodo que envolvia os pratos, copos e escondia os talheres, se espalhou pela casa e se colocou entre os dois. De repente, não estavam mais sozinhos. Era ele, ela, e o lodo que deixaram crescer. Ele não a ouvia mais, seus gritos eram muito altos. Ela não o via mais, o lodo era um espelho.

Parou de fazer o jantar e dizia que, se ele quisesse, esquentasse qualquer coisa no micro-ondas. Secretamente queria que ele se ajoelhasse em sua frente, pedisse perdão, implorasse pelo jantar e dissesse o quanto a comida dela era maravilhosa, o quanto o sentimento dela era indispensável, o quanto seu paladar ansiava pelo tempero que ela inventou quando se conheceram. Mas ele resmungava qualquer coisa e ia comer sei lá o que na frente da televisão. Ela foi trocada por um pedaço de pizza. Por uma Mac porcaria qualquer, pela marmita requentada de ontem. Nunca o viu suspirar por seu arroz.

Não conseguiria terminar tudo em um dia. Era impossível consertar em um dia o estrago feito durante sei lá quanto tempo. Levou dias, meses, anos para construir aquela cordilheira entre os dois, deixando crescer o lodo. Agora, precisaria ter paciência. O escorredor estava cheio. A pia, também. Mas talvez valesse a pena fazer um jantar. Nada muito espalhafatoso, para ele não estranhar. Algo simples, anunciando uma trégua. Não seria da noite para o dia. O inimigo não era ele, era o lodo. A gosma que tomara vida própria depois de anos de descuido. A vida não era da gosma, era dela. A tomaria de volta.

Não se importaria com o que sentisse ou achasse que sentisse. A espuma se desfazia com a água. Não jogaria nada fora. Nada. Não tinha o direito de salvar aquilo que tanto quis?

As malas na porta. As malas na porta. Fechou a torneira, secou as mãos, correu para a sala. Abriu a porta. As malas. Dezesseis anos. Sua vida era sua. Não precisava de homem algum para ser feliz, sabia seu valor. Mas queria sua vida. Tinha o direito de escolher o seu futuro. Com ele. Queria a vida que construiriam. Derrubar a cordilheira, destruir o limo. Fazer um jantar. À noite, seus braços. Talvez não esta noite, mas ela saberia esperar. Faria o silêncio, para ouvir sua voz. Queria ouvir sua voz. Ansiava por sua voz. Por sua vida. Por seu futuro.

As malas já dentro de casa. Trancou a porta, correu para levá-las ao quarto. Ele já estava para chegar.