Escrevi esse texto em fevereiro de 2009, mas – infelizmente – ele continua atual:
Coraline e o sadismo adulto
Recebi hoje o seguinte e-mail de minha amiga Flávia:
Flávia Pina.”
Para quem não sabe, a animação “Coraline e o Mundo Secreto”, de Henry Selick (de “O estranho mundo de Jack”, revelando-se discípulo piorado de Tim Burton), é baseada no livro “Coraline”, de Neil Gaiman, literatura adulta com pretensões infantis (classificado como infanto-juvenil), que tenta ser uma espécie de “Alice no País das Maravilhas” revisitado, com uma pitada a mais de crueldade.
[Lendo algumas resenhas, encontrei esta, da Revista Época: Coraline: Psicanálise em desenho animado (clique aqui para ler…mas só depois de terminar meu post!..hehehe…) ]
No filme, a menina encontra uma passagem para um universo paralelo em que seus pais são atenciosos, querem brincar com ela e fazer suas vontades (no mundo “real” os pais de Coraline vivem atarefados e ocupados). Eles têm botões costurados no lugar dos olhos e terminam por sequestrar a verdadeira mãe da menina, que acaba resgatada pela filha.
Não discuto aqui a qualidade técnica do filme, nem a qualidade literária da obra de Neil Gaiman, nem mesmo a validade artística de “Coraline”. Como um material para adultos, seria até bem interessante, para quem gosta do gênero (o que, definitivamente, não é o meu caso). O que me motiva a escrever este texto é não entender por que raios o trailer não deixa claro do que se trata, atraindo crianças inocentes para a armadilha do espelho.
Deixemos de intelectualoidices, nenhuma mãe é obrigada a conhecer os lançamentos literários considerados relevantes pela crítica (e Coraline é relativamente recente, não é um clássico literário, e espero que nunca se torne). Passar o trailer de um filme desses como se todo mundo soubesse do que se trata, em canais infantis, e – pior ainda – classificando o troço como “livre”, vai além da minha compreensão.
O filme é descrito como “uma alegoria da passagem da infância para o mundo adulto”. Então eu me pergunto: Isso é mesmo necessário? Temos literatura infantil realmente inteligente, que sabe falar sobre o mundo adulto, suas estranhezas e o momento de adaptação em linguagem realmente infantil, sem querer traumatizar ninguém, mas na última década muitos livros infantis passaram a ter, obrigatoriamente, uma temática mais soturna, mas “densa”, na intenção de prepará-las para a “vida adulta”, para o sofrimento e a morte.
Qual é a real necessidade disso? As últimas frases do texto que linquei aqui me abrem o caminho para encontrar a resposta:” As crianças podem ficar assustadas de verdade. Afinal, não é nada fácil crescer.”
O final desse texto me causou estranheza, confesso. Parece carregar uma certa satisfação pela idéia de que crianças ficariam assustadas com Coraline. Adultos que amargaram uma certa frustração ao sair da infância e se acomodaram à vida adulta com uma carga de melancolia e um bocado de peso nas costas, parecem nutrir uma certa raiva (oculta, obviamente) por aqueles que estão vivendo no mundo em que eles queriam viver: de fantasia, de alegria infantil.
Eles gostariam de ter sido avisados que o mundo adulto é uma coisa chata por natureza, e que toda aquela magia e fantasia é uma armadilha que só sufoca e faz sofrer. Teoricamente acham que estão ajudando ao colocar certa dose de ceticismo e sofrimento nas crianças (ainda que travestida de “realismo”), mas, na prática, deliciam-se em tirar delas a alegria, fantasia e vigor que eles mesmos já perderam, substituindo pela angústia de quem deve esperar o pior – ou conformar-se com uma vida insípida.
Crescer não é fácil quando o mundo é visto como um cenário horroroso, sem esperança, vazio, acinzentado e enfadonho. Quanto mais gente cair na ditadura da tristeza, na conversa fiada que atrela desânimo, depressão e pessimismo à inteligência, pior o mundo ficará. Conseguimos aquilo que buscamos, aquilo que esperamos.
Crescer é algo que acontece de forma natural, e para cada pessoa, acontece de um jeito. Não posso pegar a minha experiência ou mesmo as experiências da maioria e enfiar pela goela de todos. Algumas crianças crescem muito bem, obrigada. Felizes, animadas, criativas, seguras. Mostrar um mundo soturno, carregado, onde a fantasia é inimiga, é enganá-las, tentando puxá-las para o esgoto em que vive a maioria dos adultos, como se esse esgoto mental fosse o natural, a realidade.
Colocar, do outro lado do espelho, um casal cruel que usa a atenção como arma sufocante é, na verdade, uma forma de retirar o sentimento de culpa dos pais que não têm tempo para seus filhos, explicando: “olha, papai e mamãe não te dão atenção, mas te amam. Se dessem atenção a você, seriam cruéis e te sufocariam em uma armadilha assustadora”.
Qual é a intenção em mostrar a fantasia como um pesadelo??? Qual é a intenção em fazer com que a criança “entre em contato com seus medos”? Que tipo de mundo estamos criando? Em que tipo de adultos nos tornamos? Seres cruéis que buscam, incansavelmente, formas de abreviar a infância, destruir a inocência e transformar a espécie humana em um exército cínico cavando buracos, em círculos, se divertindo em assustar criancinhas – isso é bizarro.
O que me deixa revoltada é ver que esse tipo de gente domina o mundo e quer fazer com que todos acreditem que eles são o mundo. Que o mundo de todos é como é o mundo particular deles, em seus pesadelos distorcidos (um “pesadelo distorcido” é um troço muito escabroso).
E se eu disser que meu mundo é colorido, que consegui resgatar a criatividade e fantasia da minha infância, que eu busco exercer um pensamento de possibilidade (e não de impossibilidade) em todas as situações e que – finalmente – acenderam a luz, que o mundo é bonito e que eu dou muito mais atenção às coisas boas e belas do que às ruins, serei motivo de riso, rotulada de ingênua, ignorante, burra, alienada…ignorando-se toda a minha história de vida (sofrimentos inclusos..ih, nem te conto!) nesses trinta anos (praticamente) e os 160 de QI. Burra, porque escolheu parar de acreditar que o mundo é cinza e descobriu-se enganada por todo esse tempo. O mundo não é cinza, o mundo é da cor que eu quiser, porque ele tem todas as cores disponíveis, em um espectro infinito, um restaurante self-service multicolorido. Sirva-se quem quiser. Quem não quiser, será servido do que sobrar, ou do que for mais conveniente.
Se as pessoas insistem em continuar a trazer crianças a este mundo, que tenham a decência de deixá-las ter infância, e que tenham a decência de cumprir seus papéis de pais ou de deixar as crianças dos outros em paz, tendo condições de crescer em um mundo alegre, colorido, de desenhos animados inteligentes, interessantes e felizes, que ensinem e construam, ao invés de destruir. Nossa obrigação é simplesmente proporcionar a elas uma infância saudável e feliz, com amor, atenção e princípios para construção de um bom caráter.
Que essas pessoas concedam às crianças o direito de crescer na hora certa, naturalmente, do jeito delas. Se providas de uma boa base, essa transição não será traumática, nem assustadora, nem tampouco comparável a um filme de terror, mas simplesmente a transformação natural de uma criança equilibrada e feliz em um adulto equilibrado e feliz. Equilíbrio e felicidade não transformam ninguém em um ser menos humano, nem deveriam ofender o desequilíbrio e a infelicidade alheia.
Essas criaturas sádicas andam de cabeça para baixo. Quem sabe estejam, na verdade, do pior lado do espelho.
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