leitura

Sei que pode soar como uma heresia literária criticar Fernando Pessoa. Mas estou realmente achando que farei uma série “Heresia Literária”, porque depois que você lê um determinado número de livros e vive um determinado número de anos, passa a não fazer mais sentido ficar enaltecendo os caras só porque eles são ícones literários. São seres humanos, afinal. São pessoas. Falhas. Cheias de erros. E se escreviam bem e acertavam na literatura (afinal de contas, a literatura não exige que as coisas nos façam bem, apenas que nos soem bem), erravam — e muito — na vida e nos pensamentos. O problema de ninguém admitir isso e ninguém falar sobre isso é que depois lá estão as pessoas sem muita coisa na cabeça a encher suas caixas cranianas de palavras da depressão, da esquizofrenia ou da neurossífilis dos outros, que até hoje ressoam nas linhas que eles escreveram.

Encontrei uma antiga anotação minha sobre o poema “Aniversário”, de Fernando Pessoa (assinado pelo heterônimo “Álvaro de Campos”), e gostaria de compartilhar com vocês. Eu costumava gostar desse texto, mas quanto mais o tempo passa, mais se afasta o tempo da antiga casa, da antiga configuração familiar, mais eu o abomino enquanto conteúdo, porque exemplifica tudo o que não deve ser alimentado.

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,

O que fui de coração e parentesco.

O que fui de serões de meia-província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino,

O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…

A que distância!…

(Nem o acho…)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,

Pondo grelado nas paredes…

O que sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),

O que sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim…

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…

A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…”

.

Para que ficar lamentando o passado ou o arrastando a cada novo aniversário? Sei que é Pessoa, mas a poesia é o retrato do que não se deve fazer. É o tipo de coisa de que eu gostava no auge da depressão e que não traz nenhuma energia positiva.

“Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!” É o grito do desespero de quem percebe estar conversando inutilmente com seus sentimentos (já tinha gremlin naquela época). Não adianta só mandar o coração parar de pensar, meu amigo, é você que está desenvolvendo todo o raciocínio sugerido pelo primeiro sentimento que passou no seu coração. Você pegou o barco do sentimento e saiu navegando pelo rio gosmento da nostalgia por conta própria. Na época da depressão, quando eu era adolescente, passava madrugadas inteiras nessa viagem autodestrutiva. E terminava chorando por horas, convulsivamente, porque não sabia como sair daquele inferno.

O espírito dessa poesia não é positivo.  “O que sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa”? “Hoje já não faço anos. Duro.”? “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira”? Abra as janelas, deixe o sol entrar, jogue fora essa bagagem que só pesa, das coisas não roubadas, que, mesmo assim, apodrecem na memória. A vida muda, são ciclos, são fases. A infância passou e que bom se foi boa. Se não foi, que bom que passou.

O ovinho da depressão foi chocado desde a minha infância. Eu era feliz e saltitante, mas dramática e nostálgica. Lembro de, aos 6 anos, me sentir velha e pensar que bom mesmo era quando eu tinha 4 anos e não tinha as angústias que eu já tinha do alto dos meus quase 7. E assim foi até os 22. Aos 10 eu sofria pelos 7, quando eu era feliz e não sabia. Aos 12 eu tinha saudade dos 10, esse sim, um tempo bom que não voltava mais. Ao fazer 15, eu me senti idosa e tudo o que eu queria era voltar aos 12. Aos 17, eu sentia falta dos 15, e jurava que faria tudo diferente se pudesse voltar. Aos 18 e 19 eu vivi a profunda viuvez pelos 17, porque achava que minha vida tinha acabado naquele ano. Foi o pior período da depressão. Aos 21, já recuperada, tinha raiva de mim mesma por não ter aproveitado os 18 e 19. Aos 22, meu pai morreu, minha vida virou de cabeça para baixo e decidi, como método de sobrevivência, me agarrar à fé, olhar para a frente e nunca mais olhar para trás. O passado passou, fecho a porta e ainda que minha mente precise voltar para recuperar algum dado, não permito ao meu coração voltar lá. 

Não olhe para trás, nem um dia. Já conheci gente que se destruiu por ficar uma noite inteira sem dormir, pensando no que já foi, ouvindo discurso demoníaco do filmezinho das lembranças do passado. Caiu de tal jeito que não se levantou mais. Não vale a pena. 

Vivi muitos anos na “vibe” dessa poesia, sofrendo pelo que não existe mais e me arrastando pela vida. Hoje, entendo que a vida são quartos sequenciais. Após passarmos por um, abrimos uma nova porta para entrarmos em outro e devemos fechar a porta para seguir em frente, carregando conosco só os sentimentos bons e as coisas que aprendemos. O quarto anterior ficou para trás e o quarto em que estamos sempre tem coisas fantásticas que jamais serão devidamente exploradas se não fecharmos a porta.

.

.

PS. Eu sei que o acordo ortográfico manda tirar o acento diferencial de “pára”, mas optei conscientemente por não fazê-lo. O blog é meu e eu uso a convenção que quiser rs.

PS2. Como parte do meu projeto 2020 para atualizações do blog, vou começar a fazer posts mais curtos, voltar a falar sobre livros, sobre leitura e conversar com vocês por aqui, na medida do possível. 🙂

PS3. Obrigada pelas orações e pelo carinho que vocês têm demonstrado por mim. Eu creio na força de uma corrente de oração por um objetivo. Muito pode, por sua eficácia, a oração de um justo. Imagina de vários! Vamos juntos nessa fé! Espero poder dar boas notícias com relação à minha recuperação física ainda neste primeiro semestre. 🙂

.