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Aprendendo a dirigir IV – A saga continua

Série de posts, escrita em 2007, que desapareceu com a hecatombe sofrida por minha antiga coluna na Revista Paradoxo e que ressuscita aqui, para apreciação da posteridade.

Aprendendo a dirigir IV

A saga continua

por Vanessa Lampert
de Porto Alegre
[17/05/2007]

Eu gostaria de escrever que reprovei por ter derrubado a baliza, por ter passado em uma placa de PARE, por ter esquecido de dar pisca sei lá quantas vezes, mas não tenho nenhuma história bonita de fracasso por ação, tentativa e erro. Minha história é mais imbecil e, conseqüentemente, menos nobre. Era uma tarde fria e chuvosa. Muito fria e relativamente chuvosa. Saiu uma população da auto-escola para o local do exame. Dúzias e dúzias de pessoas. Minha intenção era ficar o mais calma possível e não me preocupar com nada, para não me desesperar.

Havia uma gatinha filhote na rua, de uns oito meses, linda, provavelmente abandonada. Muito dócil e bobinha, confesso que fiquei mais preocupada com ela do que com a prova. Tentei não entrarem conversas sobre o exame, mas foi em vão. Sem que eu percebesse, lá estava eu tocando no assunto. Das três pessoas que conversaram comigo, apenas uma passou. Não tive absolutamente nada a ver com essa estatística, juro. A gatinha continuava a se arriscar no meio das pessoas e eu sofria por não ter uma bolsa de transporte vazia para seqüestra-la. Em um determinado momento, ela foi para sei lá onde e me chamaram para a prova.

Eu estava calma. Acho que meu problema foi estar calma demais. Olhei para o retrovisor e vi muito pouca coisa. Apagaram a luz do mundo. Apesar de não ser nem seis da tarde (acho que nem cinco), estava muito escuro e chuvoso. Meus dedos, congelados, tinham pouca comunicação com o cérebro. Mesmo assim fiz tudo direitinho, só não sabia disso porque não consegui ver o meio-fio. E ainda fiquei pensando, tentando me lembrar se alguém teria que me dizer alguma coisa, se eu podia puxar o freio de mão, enfim, enrolei. Fiz a baliza e quando fui fazer a garagem, não consegui alinhar. Teria conseguido entrar manobrando, mas…meu tempo acabou.

Isso mesmo, eu estourei o tempo na baliza. São cinco minutos. Reprovei por burrice e lentidão. Terei de pagar uma taxa para o detran, para fazer nova prova, que só pode ser marcada quinze dias depois, ou seja, minha nova prova está marcada para dia 30 (são quinze dias, mas como a prova é só as quartas…). Até lá, pretendo fazer mais algumas aulas, para ver se dessa vez passo, ou, se reprovar, “reprovo bonito”, como disse o Claudio, meu instrutor.

O problema é a droga do medo. Fiquei com medo de não ter entrado direito na baliza (porque a visibilidade estava ruim), fiquei com medo de subir na calçada, de derrubar a baliza, de estar esquecendo alguma coisa importante…o medo nos faz alcançar tudo aquilo que tememos. Ele acaba trabalhando contra si mesmo, é um auto-boicote. O sucesso e o fracasso não existem antes da tentativa, o medo faz brotar o fracasso, por geração espontânea. O medo nunca gera sucesso. Sim, eu sei que estou parecendo aqueles odiosos livros de auto-ajuda, mas me desculpem, não consigo explicar isso de uma forma mais inteligente. Volto às aulas com o objetivo de ser capaz de fazer essa baliza em menos de cinco minutos até no escuro, de olhos vendados. É uma questão de honra.

Aprendendo a dirigir III – persistir é o lema

Agendei a publicação desta série, que foi originalmente publicada em minha extinta coluna da Revista Paradoxo em 2007, quando descobri que a interface da revista foi totalmente modificada e os arquivos de minha coluna se perderam. Como muitas pessoas me disseram que essa série foi de extrema importância para elas, decidi trazer todos os capítulos para cá, e postar um por dia. Enjoy.
Aprendendo a dirigir III

Persistir é o lema

por Vanessa Lampert
de Porto Alegre
[02/05/2007]

Não marquei aulas para o feriado e hoje alguns coleguinhas fizeram a tão temida prova prática do Detran. Espero que amanhã eu ainda me lembre de como se coloca um carro em movimento. Tenho esse problema de esquecer as coisas, é como se o espaço de armazenamento de coisas realmente úteis fosse ínfimo em meu cérebro. Grande mesmo é o compartimento para entulhamento de bobagens, lá até estão alguns fatos que me lembro em seqüência cronológica (com datas, inclusive), cuja precisão costuma irritar muita gente. Porém, só Deus sabe o porquê, a seqüência de simples movimentos mecânicos demora séculos para se grudar em meu córtex.

Aprendi, há bem pouco tempo, a lidar com essas limitações, meu lobo frontal não vai com a minha cara e terei de conviver com isso. Incrível como precisamos encarar nossas dificuldades, aceitá-las e tentar descobrir o que fazer com essas informações, para que algo enfim dê certo. Jamais imaginei que seria capaz de dar a partida no carro com tanta facilidade.

Sim, riam de mim, há pouquíssimas semanas eu era totalmente incapaz de fazer uma troca de marcha e olhar no retrovisor ao mesmo tempo. Com a inestimável ajuda do Claudio, o instrutor legal, parei de ter chiliques ao me aproximar de veículos monstruosos como ônibus e caminhões, também não fico totalmente paralisada quando um pedestre (ou um cachorro) se joga na minha frente.

Os pedestres de Porto Alegre são suicidas. Sério. Eles andam no meio da rua, têm sérias alergias à calçada e faixa de segurança. No local em que faço baliza, além dos pedestres suicidas, também existem cachorros psicóticos. São pobres caninos abandonados que perderam o juízo (se é que algum dia o tiveram), andam em bando e perseguem os carros. Sim, perseguem os carros. Eles correm atrás dos carros das auto-escolas, latindo e ameaçando morder os pneus. Sinceramente, eu nunca os vi correndo atrás de outros carros, eles sabem ler. São, neste ponto (e em vários outros, imagino), muito mais evoluídos do que alguns motoristas que temos a infelicidade de encontrar no trânsito.

Lá estou eu, pseudo-apavorada, tentando aprender a dirigir, segura por estar em um carro bem sinalizado sobre a ausência de habilitação. Ando mais devagar do que os carros normais, faço as curvas e as conversões bem mais lentamente do que o resto da humanidade, troco as marchas com menos habilidade do que quem dirige há duzentos anos e, eventualmente, posso apagar o carro no sinal. E as criaturas não têm a menor paciência, buzinam histericamente, xingam, fazem careta e batem as mãos no volante.

Eles não sabem ler, eu não sei dirigir, estamos quites. Se está com pressa, não pare atrás de um carro de auto-escola. Se parar, favor respeite, respire milhões de vezes e não fique assim muito perto, pode ser perigoso. Total incapacidade de se colocar no lugar dos outros. Será que eles nasceram sabendo dirigir? Ou acordaram um dia, aos cinco anos de idade, e tiveram uma revelação:

– Mamãe, mamãe, se eu pisar fundo na embreagem, engatar a primeira marcha, soltar até a metade, acelerando, eu coloco o carro em movimento!

Ou, quem sabe, sejam mutantes grudados aos carros. Eles e os carros sempre foram uma coisa só, mas uma coisa tão amalgamada que lhes parece absurdo que alguém, veja só, ainda esteja tentando coordenar seu mísero par de pernas e seus dois braços aos comandos do automóvel.

Sua capacidade motora se desenvolveu tanto que não sobrou espaço para o cérebro. Não percebem que buzinar para um carro de auto-escola, no qual se encontra uma pessoinha que ainda está aprendendo a dirigir, faz com que ela fique ainda mais nervosa e demore o dobro ou o triplo do tempo para sair do lugar. Eu ainda apago o carro quando um infeliz começa a buzinar enlouquecidamente atrás de mim no semáforo. São os únicos momentos em que ainda meto os pés pelas mãos (quase literalmente) e confundo tudo o que tinha de fazer.

No entanto, já consegui vencer tanta coisa e estou tão feliz por dirigir feito gente (ou quase), que nenhum motorista abilolado vai fazer com que eu desista. Se tudo der certo, na próxima quarta farei meu exame. Se der errado, continuo com as aulas, torturando os motoristas analfabetos apertadores compulsivos de buzinas. Sem sofrimento.


PS: Texto originalmente publicado em 2007. Aguarde continuação amanhã.