Categoria: Sociedade

Começou a distopia

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Minha teoria é que já estamos vivendo os últimos dias da sociedade como a conhecemos. Não é o fim do mundo, a Terra, em si, está bem longe de acabar, mas a estrutura de liberdade e as condições decentes de vida e de pensamento estão com os dias contados. As provas se avolumam e escrevo um romance sobre isso há algum tempo (espero terminar antes do arrebatamento, porque depois não estarei mais por aqui rs). Mas um dos principais indícios é a rápida deformação do pensamento. O modo de pensar mudou para pior. A correria tem transformado a humanidade em uma massa com déficit de atenção artificial e crônico. As pessoas não conseguem manter a concentração por mais de poucos minutos e isso gera uma multidão superficial e pronta para engolir qualquer coisa que a mídia imponha. Sem pensar. Manipuláveis e modificáveis a ponto de servirem como meios para quaisquer fins.

Essa cena do livro 1984, de George Orwell, de quando as pessoas assistem ao programa Dois Minutos de Ódio, é assustadoramente parecida, em sua parte inicial, com o que presenciei um tempo atrás em uma sala de espera enquanto as pessoas assistiam a um telejornal da Globo. A parte final, porém, é mais assustadoramente parecida ainda com o que vemos internet afora.

“Como de costume, o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira da tela, Ouviram-se assobios em vários pontos da plateia. A mulher ruiva e franzina soltou um guincho em que medo e repugnância se fundiam. Goldstein era o renegado e apóstata que um dia, muito tempo antes (quanto tempo, exatamente, era coisa de que ninguém se lembrava), fora uma das figuras destacadas do Partido, quase tão importante quanto o próprio Grande Irmão, e que depois se entregara a atividades contrarrevolucionárias, fora condenado à morte e em seguida fugira misteriosamente a sumira do mapa. A programação de Dois Minutos de Ódio variava todos os dias, mas o principal personagem era sempre Goldstein. Ele era o traidor original, o primeiro conspurcador da pureza do Partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido, todas as perfídias, sabotagens, heresias, todos os desvios eram resultado direto de sua pregação. […]

O diafragma de Winston estava contraído. Ele era incapaz de olhar para o rosto de Goldstein sem ser invadido por uma dolorosa combinação de emoções. Era um rosto judaico chupado, envolto por uma vasta lanugem de cabelo branco e munido de um pequeno cavanhaque um rosto inteligente e apesar disso, por alguma razão, inerentemente desprezível, com uma espécie de tolice senil no longo nariz esguio, onde se equilibrava um par de óculos já perto da ponta. Parecia a cara de uma ovelha, e a voz, também, tinha uma qualidade algo ovina. Goldstein bradava seu discurso envenenado de sempre sobre as doutrinas do Partido um discurso tão exagerado e perverso que não servia nem para enganar uma criança, e ao mesmo tempo suficientemente plausível para fazer com que o ouvinte fosse tomado pela sensação alarmada de que outras pessoas menos equilibradas do que ele próprio poderiam ser iludidas pelo que estava sendo afirmado. […]

Não fazia nem meio minuto que o Ódio havia começado e metade das pessoas presentes no salão já começara a emitir exclamações incontroláveis de fúria. Impossível tolerar a visão do rosto ovino repleto de empáfia na tela e o poder aterrador do exército eurasiano logo atrás. Além disso, a visão ou mesmo a ideia de Goldstein produziam automaticamente medo e ira. […]  O estranho, porém, era que embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todos, embora todos os dias, e mil vezes por dia, nos palanques, nas teletelas, nos jornais, no livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, expostas ao escárnio geral como o lixo lamentável que eram, apesar disso tudo, o ritmo de crescimento de sua influência parecia nunca arrefecer. Sempre havia novos trouxas à espera de ser seduzidos por ele. Não passava um dia sem que espiões e sabotadores agindo a seu serviço fossem desmascarados pela Polícia das Ideias. […]

Em seu segundo minuto, o Ódio virou desvario. As pessoas pulavam em seus lugares, gritando com toda a força de seus pulmões no esforço de afogar a exasperante voz estentórea que saía da tela. A mulher esguia e ruiva adquirira uma tonalidade rosa-vivo, e sua boca se abria e se fechava como a boca de uma peixe fora d’água. […] A garota de cabelo escuro sentada atrás de Winston começara a gritar “Porco! Porco! Porco!” […]. O mais horrível dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a desempenhar um papel, mas de ser impossível manter-se à margem. Depois de trinta segundos, já não era preciso fingir. Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar, de torturar, de afundar rostos com uma marreta, parecia circular pela plateia inteira como uma corrente elétrica, transformando as pessoas, mesmo contra sua vontade, em malucos a berrar, rostos deformados pela fúria.

Mesmo assim, a raiva que as pessoas sentiam era uma emoção abstrata, sem direção, que podia ser transferida de um objeto para outro como a chama de um maçarico. Assim, em determinado instante a fúria de Winston não estava nem um pouco voltada contra Goldstein, mas, ao contrário, visava o  Grande Irmão, o Partido e a Polícia das Ideias; e nesses momentos seu coração se solidarizava com o herege solitário e ridicularizado que aparecia na tela, único guardião da verdade e da saúde mental num mundo de mentiras. Isso não o impedia de, no instante seguinte, irmanar-se àquele que o cercavam; quando isso acontecia, tudo o que era dito a respeito de Goldstein lhe parecia verdadeiro. Nesses momentos, sua repulsa secreta pelo Grande Irmão se transformava em veneração, e o Grande Irmão adquiria uma estatura monumental, transformava-se num protetor destemido, firme feito rocha para enfrentar as hordas da Ásia, e Goldstein, a  despeito de seu isolamento, de sua vulnerabilidade e da incerteza que cercava inclusive sua existência, virava um mago sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização com o mero poder de sua voz. […]

O Ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein se transformara efetivamente num balido de ovelha e por um instante seu rosto assumiu um semblante de ovelha. Depois o semblante de ovelha se dissolveu e foi substituído pelo rosto de um soldado eurasiano que parecia avançar, imenso e terrível, metralhadora roncando, como se pretendesse saltar para fora da superfície da tela, de modo que algumas pessoas sentadas na primeira fila se inclinaram para trás nos assentos. No mesmo instante, porém, levando todos os presentes a suspirar aliviados, o personagem hostil desapareceu para dar lugar ao rosto do Grande Irmão, cabelo preto, bigode preto, cheio de força e misteriosa calma, e tão imenso que quase enchia a tela inteira. Ninguém ouvia o que o Grande Irmão estava dizendo. Eram apenas algumas palavras de estímulo, o tipo de palavras pronunciadas no fragor da batalha, impossíveis de distinguir isoladamente, mas que restauram a confiança pelo mero fato de serem ditas. Em seguida o rosto do Grande Irmão se esfumou outra vez e os três slogans do Partido, em letras maiúsculas, ocuparam seu lugar.

GUERRA É PAZ

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

IGNORÂNCIA É FORÇA”

Claro que, no mundo real, os slogans não são expostos de forma literal. Porém, essas três frases são a essência do que o mundo vive atualmente. E todos esperam que o Grande Irmão apareça e os livre da ameaça, do medo e da agressividade que os assusta e descontrola. Sem saber, porém, que o que mais os apavora é criado justamente por quem lhes estende o alívio. O Grande Irmão não é a mídia, mas controla a mídia. Estende a cruz de seu cetro para empurrar as ovelhas aonde ele quer que estejam. Não conseguiremos parar esse movimento, ele está onde tem que estar. A distopia é inevitável e caminhamos para ela. Porém, não precisamos participar disso.

Goldsteins são apontados pela mídia diariamente, definindo a quem devemos odiar. Há quem sequer consiga olhar para uma foto de uma personalidade sem queimar de raiva por dentro – e não percebe o quanto isso é anormal. Vivemos todos, atualmente, mergulhados nos Dois Minutos de Ódio, que parecem não ter fim. Cabe a nós escolher desligar esse canal em nossa cabeça. Pelo menos enquanto não é obrigatório assistir…

Os mosquitos e as cabeças gigantes de isopor

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Quanto mais o tempo passa, mais me convenço de que uma massa cada vez maior de brasileiros vive no modo zumbi, dirigido pela mídia. Aquela, que diz a quem você deve odiar, a quem você deve amar, de qual filme você deve gostar e o que deve vestir. Pois é. Ela, que passou meses dizendo que o Brasil estava acabando, que o mundo estava desabando e que estávamos à beira do caos. 

E agora, com a crise econômica, o cenário político instável, empresas demitindo e uma epidemia de doenças virais transmitidas por um mosquito que ninguém consegue controlar, a mídia manda todo mundo parar e “cair na folia” (“folia”…quem usa essa palavra em 2016?) — e o brasileiro, ontem tão indignado com os problemas do país, simplesmente obedece.

Não acho que ficar reclamando do governo resolva alguma coisa (muito pelo contrário…), mas estranho a mudança brusca de atitude nessa época do ano. Todo mundo interrompe a vida pra “festejar” (o quê?) e encher as ruas de lixo para juntar água e criar Aedes aegypti.

A primeira vez que passei por São Paulo, em uma viagem de ônibus interestadual, vi restos de carros alegóricos jogados em um terreno, apodrecendo a céu aberto. Isso foi no final da década de 90. Quando me mudei para cá, cinco anos atrás, vi a mesma cena, em um terreno maior na Barra Funda, na rua Abrahão Ribeiro. Elefantes gigantes de isopor se decompuseram diante dos olhos de quem quisesse ver, o ano inteiro. Com eles, todos os demais carros alegóricos do carnaval anterior.

Muda o prefeito e tudo continua igual. Ano após ano, essa situação se repete. Aquele terreno na Abrahão Ribeiro agora abriga a construção da tal “Fábrica do Samba”, erguida com dinheiro público pela prefeitura de São Paulo (e nem adianta xingar só o PT, a obra foi iniciada na gestão anterior), mas o lixo do carnaval continua jogado atrás de um muro na marginal Tietê, a céu aberto, juntando água para mosquito da dengue.

Mosquito esse que também tem transmitido o Zika, vírus que causa microcefalia em fetos e, aparentemente, outras sequelas neurológicas. Apesar de essa informação não ter sido devidamente divulgada ainda, o vírus também é sexualmente transmissível. E o carnaval, você sabe, é aquela “festa” em que todo mundo fica com todo mundo e o sexo rola solto, junto com muito álcool e mentes vazias.

Apesar das campanhas que pedem uso de preservativo, sejamos honestos: que pessoa bêbada se lembra de preservativo? O álcool mata neurônios e inibe o raciocínio, além de prejudicar a coordenação motora. Ou seja, as campanhas são só para inglês ver (assim como as outras campanhas “educativas” para carnaval, como “se beber, não dirija” ou “diga não ao assédio”).

Agora, olha que linda combinação: criamos Aedes aegypti o ano inteiro dentro de cabeças gigantes de monstros de isopor semidecompostos e, agora que estão fortinhos e cheios de Zika, picando todo mundo, vamos fazer uma festa em que um bando de gente bêbada fica pulando ao som de tambores e fazem sexo para espalhar mais vírus por aí (fora o HIV, HPV e tantos outros que estão no menu do carnaval)…. Oi? Não faz sentido.

Assim como não faz sentido, para a minha cabeça (racional demais), que um país pare durante quase uma semana. Você quer seguir a vida normalmente, mas não pode porque está tudo fechado, todos em recesso. E a mídia (na verdade, quem a controla) não está nem aí. Na quarta-feira de cinzas, depois de todos os acidentes nas estradas, de todos os assassinatos em bailes de carnaval, depois de todas as infecções por vírus, de todos os acidentes nas ruas, de todos os comas alcoólicos, de todos os estupros e traumatismos cranianos, quem sobreviver vai à missa receber cinza na testa e está tudo ok.

Aí, provavelmente, vai voltar a posar de defensora da honestidade e dos bons costumes, alardeando a corrupção do partido X, do partido Y, dos políticos, dos empresários e de quem o mestre mandar, mas sem criar celeuma em torno da corrupção que corre solta no carnaval brasileiro. Não entra na minha cabeça fazer a cobertura de um evento financiado pelo crime organizado, vender a “festa” para o público como se fosse uma grande celebração de alegria enquanto sabe o que, de fato, está rolando ali.

Sei que as pessoas usam o carnaval como válvula de escape, assim como usam as baladas de final de semana e toda a lista interminável de entretenimento que a nossa sociedade tenta nos convencer de que precisamos. Mas enfiar a cabeça em um buraco no chão não vai resolver os problemas. A sensação de bem-estar é temporária (se é que existe) e pode ter resultados catastróficos, se a pessoa estiver dentro das estatísticas de desgraças que, depois do feriado, a mídia inevitavelmente vai divulgar.

A hipocrisia não é exclusividade dos religiosos. Ela faz parte da vida daqueles que optaram por viver de acordo com o que sentem, de acordo com suas vontades e com aquilo que lhes é conveniente, sejam eles religiosos, ateus ou da coluna do meio.

Quanto mais o tempo passa, mais percebo que, com o mundo do jeito que está, vale a pena assumir a esquisitice e ser um alienígena por aqui. Não faço a menor questão de participar da cultura do “esqueci o cérebro em casa e coloquei uma televisão no lugar”.

PS: lixocar3O terreno foi parcialmente limpo, para receber o lixo do carnaval atual, mas ainda é possível ver restos de carros alegóricos do carnaval anterior, apodrecendo a céu aberto. Nosso amigo A. aegypti manda beijos.

PS2: Ah, e a mídia está tri feliz, anunciando a chegada de turistas do mundo inteiro, que vieram para ser picados pelo Aedes aegypti e levar a praga da Zika para o resto do globo. Uhu! Vamos espalhar uma doença horrorosa para todos os continentes. Isso, sim, é diversão.

PS3: Não vamos nos esquecer de outro efeito colateral do sexo (principalmente feito sem camisinha, com álcool e sem cérebro): a gravidez! Isso, aquele negócio que, misturado com o Zika vírus (sempre ele) traz bebezinhos microcéfalos ao mundo. É hora de comemorar?